Cotidiano
NÃO
ESTOU SENTINDO NADA!
"Socorro,
não estou sentindo nada", começa assim uma canção do Arnaldo
Antunes. Lembrei-me dela num percurso curto, mas suficiente: pegando
o trem da Barra Funda à Luz. Fazia muito frio, tempo úmido, o trem
lento, muitas paradas, notei os casebres ladeando a via ― a favela
cresce dia a dia ―, os barracos dependurados qual em palafitas,
alguns a ponto de despencar sobre os trilhos...
Observo,
mas não sinto...
Um
deles em especial, perdido no que supus cantinho dos mais úmidos,
ficava colado atrás de uma coluna de concreto, quase que só dava
pra ver seu telhado, o qual, pelo que notei, servia de lixeira: os
moradores dos outros jogavam de tudo na cobertura do que ficava mais
abaixo. Imaginei a infestação de ratos...
Mas
não senti nada, não... só observava!
O
trem demorava tanto, parecia que nunca chegaria à Luz, o que fazer?
Fiquei de olho no cortiço, imaginei que tipo de gente morava ali, se
escondia, convivia com baratas, restos, a ponto de despencar nos
trilhos da CPTM e aguentar aquele frio. O dia estava de rachar.
Rangiam-me os dentes...
Mas
eu mesmo, nem tchum! Sentir? Sentia nada, não...
Lembrei-me,
meio à toa, de ter recentemente passado de ônibus na Estrada de
Taipas. Num dos trechos mais estreitos dela era possível, da janela
da condução, assistir a um tico da novela das oito na TV do
morador, que, certamente, já está habituado ao ronronar dos ônibus,
aos olhares indiscretos e à fumaça que avança todos os dias janela
adentro. Pensei: quanto de insensibilidade é necessário para
suportar este tipo de vida?
Mas
logo divaguei sobre outro tipo, que tive o privilégio de conhecer.
Ele mora sozinho num apartamento no Morumbi: quatrocentos metros
quadrados de puro luxo e solidão garantidos! E pasmei novamente:
quanto de insensibilidade é necessário para que um felizardo, de
sua ampla sacada, observe sem dor a favela que se expande vizinha aos
castelos?
Poxa,
mas dizer que eu sentia algo de verdade a respeito, não. Só
lembrava, ao acaso da demora...
Voltando
ao trem, que nunca mais andava, e às favelas, que sempre se arranjam
nalgum canto, notei, também meio ao acaso, que eu não era nem
melhor, nem pior do que os caras que convivem com os ratos. Ou com o
ricaço que me disse, outro dia, "até acho vantajoso que a
empregada more na favela ― é pertinho, não gasto um centavo a
mais com condução. (Ele...).
?Socorro!
Não estou sentindo nada?, mas assisto a tudo, e me parece, às
vezes, que antes que qualquer ação pública venha a dar conta de um
sistema mais digno de vida, há que se resgatar a sensibilidade: quem
é incapaz de sentir algo, quem sente nada, ?nem medo, nem calor,
nem fogo?, custa a dar conta do próprio nariz. Perdido na pressa
da metrópole dirá perceber que a dor alheia é também a sua, e que
o planeta não sustenta mais tanta insensibilidade.
Mas
tudo isto é indiferente... Basta que o trem volte a andar, basta que
eu não perca o horário, basta que eu consiga chegar ao serviço,
cumpra o compromisso e conquiste uma promoção. Antes que o mundo
morra por falta de carinho.
Escrito em setembro/2011.
Antonio
Gomes
é músico, compositor e escritor.
Contato:
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antonigomes@gmail.com
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