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NÃO ESTOU SENTINDO NADA!
Crônica premonitória sobre a Favela do Moinho
Antonio Gomes 2012-02-13

Cotidiano

NÃO ESTOU SENTINDO NADA!

"Socorro, não estou sentindo nada", começa assim uma canção do Arnaldo Antunes. Lembrei-me dela num percurso curto, mas suficiente: pegando o trem da Barra Funda à Luz. Fazia muito frio, tempo úmido, o trem lento, muitas paradas, notei os casebres ladeando a via ― a favela cresce dia a dia ―, os barracos dependurados qual em palafitas, alguns a ponto de despencar sobre os trilhos...


Observo, mas não sinto...


Um deles em especial, perdido no que supus cantinho dos mais úmidos, ficava colado atrás de uma coluna de concreto, quase que só dava pra ver seu telhado, o qual, pelo que notei, servia de lixeira: os moradores dos outros jogavam de tudo na cobertura do que ficava mais abaixo. Imaginei a infestação de ratos...


Mas não senti nada, não... só observava!


O trem demorava tanto, parecia que nunca chegaria à Luz, o que fazer? Fiquei de olho no cortiço, imaginei que tipo de gente morava ali, se escondia, convivia com baratas, restos, a ponto de despencar nos trilhos da CPTM e aguentar aquele frio. O dia estava de rachar. Rangiam-me os dentes...


Mas eu mesmo, nem tchum! Sentir? Sentia nada, não...


Lembrei-me, meio à toa, de ter recentemente passado de ônibus na Estrada de Taipas. Num dos trechos mais estreitos dela era possível, da janela da condução, assistir a um tico da novela das oito na TV do morador, que, certamente, já está habituado ao ronronar dos ônibus, aos olhares indiscretos e à fumaça que avança todos os dias janela adentro. Pensei: quanto de insensibilidade é necessário para suportar este tipo de vida?


Mas logo divaguei sobre outro tipo, que tive o privilégio de conhecer. Ele mora sozinho num apartamento no Morumbi: quatrocentos metros quadrados de puro luxo e solidão garantidos! E pasmei novamente: quanto de insensibilidade é necessário para que um felizardo, de sua ampla sacada, observe sem dor a favela que se expande vizinha aos castelos?

Poxa, mas dizer que eu sentia algo de verdade a respeito, não. Só lembrava, ao acaso da demora...


Voltando ao trem, que nunca mais andava, e às favelas, que sempre se arranjam nalgum canto, notei, também meio ao acaso, que eu não era nem melhor, nem pior do que os caras que convivem com os ratos. Ou com o ricaço que me disse, outro dia, "até acho vantajoso que a empregada more na favela ― é pertinho, não gasto um centavo a mais com condução. (Ele...).


?Socorro! Não estou sentindo nada?, mas assisto a tudo, e me parece, às vezes, que antes que qualquer ação pública venha a dar conta de um sistema mais digno de vida, há que se resgatar a sensibilidade: quem é incapaz de sentir algo, quem sente nada, ?nem medo, nem calor, nem fogo?, custa a dar conta do próprio nariz. Perdido na pressa da metrópole dirá perceber que a dor alheia é também a sua, e que o planeta não sustenta mais tanta insensibilidade.


Mas tudo isto é indiferente... Basta que o trem volte a andar, basta que eu não perca o horário, basta que eu consiga chegar ao serviço, cumpra o compromisso e conquiste uma promoção. Antes que o mundo morra por falta de carinho.

Escrito em setembro/2011.

Antonio Gomes é músico, compositor e escritor.
Contato: (11) 2537 3120 / 6356 1766
antonigomes@gmail.com


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