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Só a literatura multiplica a vida
Incômoda, a autora de Robertices acredita que só o tempo dita o valor real de uma obra
SERGIO ALMEIDA 2009-06-05
Aos 82 anos, Luísa Dacosta mantém intacto o olhar vivo, um sinal do interesse apaixonado com que ainda se envolve no quotidiano, batendo-se pelas causas em que sempre acreditou. "Deve ser uma doença, mas não consigo distanciar-me nem ficar indiferente", justifica.

A autora em destaque na 79ª edição da Feira do Livro do Porto vai ser homenageada amanhã, às 17 horas, no auditório do recinto, numa cerimónia em que participam Paula Morão, José António Gomes e Cristina Valadas. Um grupo de alunos da Escola EB 2/3 Francisco Torrinha - estabelecimento portuense, onde leccionou - vai ler textos de sua autoria.

Se todas as homenagens são uma honra, há algum simbolismo especial por ser a autora em destaque nesta edição da Feira do Livro do Porto, cidade que tanto lhe diz?

Sou transmontana, mas estou muito ligada ao Porto. Mesmo na infância, a cidade de referência era o Porto. Aos 12 anos, já gostava de cá vir para visitar o Museu Soares dos Reis, na altura o único. Tinha, e mantenho, uma devoção pelo grande pintor alentejano Henrique Pousão, cujas obras estão lá expostas. Mais tarde, fiquei ligada ao Porto pela vida escolar. Fui muito feliz a dar aulas. Além do mais, a escola foi uma forma de não morrer de fome como escritora, porque não tenho projecção...

Excessiva modéstia, não acha?

Não é modéstia. O que recebo de direitos de autor não me permitiria sobreviver. Ainda no ano passado devo ter recebido uns 800 euros da Sociedade Portuguesa de Autores... Por outro lado, sou uma escritora incómoda. Na apresentação de um livro, por exemplo, sou muito exigente.

Pertence a uma geração de grandes autores, como Agustina, Saramago, Urbano ou Oscar Lopes. Que marcas deixam todos estes nomes na literatura portuguesa?

As marcas só são detectáveis mais tarde. Basta vermos que os maiores poetas portugueses do século XIX foram Cesário e Pessanha, autores com um grau de reconhecimento quase nulo no seu tempo. O primeiro não publicou nada, com excepção da obra prima "Sentimento de um ocidental", e foi até acusado por um crítico espanhol de fazer má figura entre os seus pares, os quais estão hoje esquecidos. É frequente vermos autores conhecidos na sua época serem ignorados no futuro.

Preocupa-a o modo como a sua obra será relembrada?

Não tenho com que me preocupar. As artes são pródigas em descobertas tardias. Nunca se sabe. Depende da forma como essa obra irá influenciar as gerações seguintes.

Para uma escritora que sempre se pautou pela discrição, é com agrado que vê os prémios que tem recebido ao longo dos tempos?

É verdade. Nunca concorri a prémios a título individual, mas, por vezes, os meus editores fizeram-no e recebi algumas distinções, quase todas simbólicas.

Costuma dizer que é uma autora que vende pouco, mas muitos dos seus livros foram reeditados.

Os infantis, sim, mas a maioria dos que pertencem a outros géneros presumo que não. Como se sabe, um autor nunca tem total controlo sobre os livros vendidos.

No ensino e na literatura, sempre manteve o culto da exigência. Reconhece que esse é o caminho mais difícil?

Nos livros, sobretudo. Hoje escreve-se de acordo com uma linguagem informativa. Embora chegue a toda a gente, ao contrário do que acontece com a literatura, esta escrita deixa-nos indiferentes. A única linguagem que multiplica a vida e nos faz irmanar com os outros é a literária. Foi o que sempre disse aos meus alunos.

No mais recente volume do seu diário, narra com tristeza vários acontecimentos exemplificativos da guerra, violência e fome que assola o planeta. Ainda se compadece com o estado Mundo?

Não sou capaz de tornar-me indiferente. Ainda agora o JN noticiou a morte de 10 mulheres em cinco meses, vítimas de violência doméstica. O que se passa é que, muitas vezes, as leis estão atrasadas em relação aos problemas.

Os anos não nos tornam menos vulneráveis face à dor?

É capaz de ser uma doença, mas não consigo distanciar-me.

Por que motivo o género diarístico tem tão poucos cultores por cá?

Não sei, mas, no meu caso, a condição feminina é importante. As mulheres vivem mais a sua própria intimidade e, no meu tempo, tinham menos oportunidades. Mas não pensemos que tudo mudou. Basta ver que a lei ainda prevê um perdão de cinco anos ao marido que descobre a infidelidade da mulher, em nome da lavagem de honra. Pelos vistos, a mulher não tem honra, porque esta lei só se aplica aos homens.
JN




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